Um relatório feito pela Defensoria Pública da União (DPU) em conjunto com a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) revelou que o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito que apura atos antidemocráticos, decretou prisões preventivas de investigados pelos atos golpistas ocorridos no dias 8 de janeiro mesmo quando o Ministério Público requereu apenas a aplicação de medidas cautelares diversas ou a liberdade provisória.
O documento, que tem 71 páginas, revela diversas ilegalidades relacionadas às milhares de prisões de pessoas investigadas pelos atos.
Com vistas a assegurar o sistema acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988, a chamada Lei Anticrime (13.964/2019) suprimiu o termo “de ofício” contido no artigo 282, § 2º, do Código de Processo Penal, vedando, assim, a possibilidade de o magistrado decretar a prisão preventiva quando o Ministério Público não requer a medida.
Remanesce, no entanto, a discussão acerca da possibilidade de decretação da prisão preventiva quando o Parquet requer medidas cautelares diversas da prisão, e não a cautelar máxima (leia-se prisão).
A controvérsia mais latente se situa no Superior Tribunal de Justiça, já que as duas Turmas criminais possuem entendimentos dissonantes em relação ao tema. Enquanto a Sexta Turma julga possível a decretação da cautela máxima quando o MP apenas requer apenas uma cautelar menos gravosa, a Quinta veda tal imposição.
O mesmo, no entanto, não se pode dizer da hipótese em que o Ministério Público pugna pela liberdade provisória ou não requer a prisão cautelar, já que a jurisprudência – na linha do que prevê a Constituição e a lei – é uníssona ao vedar tal iniciativa.
A revelação é extremamente preocupante, visto que a decretação da prisão preventiva quando o Ministério Público pugna pela liberdade afronta o sistema acusatório, que é o alicerce de um processo penal justo e democrático.
Veja, abaixo, o tópico em que a Defensoria relata a violação grave ao sistema acusatório.
“3.1.2. Manutenção da pessoa custodiada mesmo após manifestação da acusação pela liberdade
A Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava no art. 282, §§ 2º e 4º e no art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva, ou imposição de medidas cautelares diversas da prisão, sem o prévio requerimento do Ministério Público, seja no curso da investigação criminal ou do processo. Não é mais lícito, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação ex officio do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade.
Insta salientar que a Constituição Federal, ao promover a separação das funções de acusação e julgamento, adota o sistema acusatório de persecução penal, garantindo que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, conforme previsão do artigo 5º, LIV. Nessa perspectiva, manifestando-se o órgão acusatório, quando da realização da audiência de custódia, pela concessão da liberdade, com ou sem aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, a soltura é medida que se impõe, sob o risco de perpetuação ad infinitum de uma prisão de ofício, não admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Nas audiências de custódias realizadas no decorrer dos dias 10/01/2023 a 15/01/2023, a Defensoria Pública da União elaborou sistema de registro com as audiências em que o Ministério Público Federal se manifestou pela concessão da liberdade provisória, com ou sem aplicação de medidas cautelares diversas da prisão. A partir do momento em que o órgão acusatório requer a liberdade da pessoa custodiada, a literalidade dos artigos 311 e 282, §2º do Código de Processo Penal deve ser seguida, não havendo que se admitir a manutenção de uma prisão de ofício ou imposição de cautelares sem requerimento da acusação nesse sentido.
A reforma legislativa operada em 2019 nada mais fez do que adequar o Código de Processo Penal ao sistema acusatório instituído pela própria Constituição Federal. O próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 188.888/MG reconheceu, por unanimidade da 2ª Turma, a impossibilidade jurídica de o magistrado, mesmo fora do contexto da audiência de custódia, decretar, de ofício, a prisão preventiva de qualquer pessoa submetida a atos de persecução criminal (seja inquérito policial, procedimento de investigação criminal ou processo judicial), “tendo em vista as inovações introduzidas nessa matéria pela recentíssima Lei nº 13.964/2019 (“Lei Anticrime”), que deu particular destaque ao sistema acusatório adotado pela Constituição, negando ao Juiz competência para a imposição, ex officio, dessa modalidade de privação cautelar da liberdade individual do cidadão (CPP, art. 282, §§ 2º e 4º, c/c art. 311)”, conforme o voto do relator.
Portanto, resta evidente que, com a delegação parcial dos poderes para a realização da audiência de custódia por partes dos juízes de primeira instância, as prisões que se perpetuam, mesmo com pedido do órgão acusatório pela soltura, estão em confronto com o ordenamento jurídico brasileiro.