Você sabe a diferença entre a violação sexual mediante fraude e o estupro? Esses são dois tipos penais importantíssimos, mas que podem acabar gerando confusão diante da ocorrência de determinado caso concreto. Hoje, de maneira rápida, falaremos da principal diferença entre os dois.
O estupro
Talvez seja possível afirmar que dentro do ordenamento jurídico pátrio, o estupro é o crime que mais gera comoção e ira no brasileiro. Já estamos acostumados a ouvir, por exemplo, que o tipo penal é rechaçado até pela própria criminalidade, dada a aversão que ele causa.
Essa repulsa, bem verdade, não é exclusiva do brasileiro. O estupro já era criminalizado no antigo direito romano.
Como podemos, então, conceituar esse crime previsto pelo artigo 213 do Código Penal?
Bem. O objetivo principal, sem dúvidas, é a preservação da liberdade sexual. Escolher “o parceiro” é, por óbvio, um dos direitos mais básicos do ser humano, de modo que respeitá-lo é o mínimo que se espera de uma sociedade civilizada.
Pedimos, no entanto, cuidado com esse conceito. Isso porque a liberdade de escolher um parceiro não pode ser entendida como uma carta branca para qualquer tipo de ação que venha em seguida.
Explicamos: antigamente, tinha-se a ideia de que um marido não poderia praticar o crime de estupro contra a esposa, já que o “pacto afetivo” havia sido celebrado por opção dos dois. A relação sexual era entendida como um direito decorrente do matrimônio, sendo possível que o homem pudesse exercê-lo quando bem entendesse.
Nada mais absurdo. A liberdade sexual pressupõe a faculdade de se escolher o parceiro, mas mais ainda a de realizar um ato deste cunho apenas nos momentos em que o desejo se fizer presente.
É por isso, inclusive, que a prostituta também pode ser vítima de um estupro (ainda que muitos permaneçam defendendo que não).
Em um resumo rápido, portanto, temos que o crime requer:
A ação de constranger (forçar ou obrigar alguém a fazer algo), mediante
a) Violência, que consiste no rompimento da resistência da vítima através de força física ou material (fogo, água, choque, etc), ou
b) Grave ameaça (também chamada de “violência moral”), onde o agente promete fazer um mal grave contra a vítima ou contra um terceiro caso ela se oponha a oferecer a vantagem sexual pretendida.
Por fim, necessário evidenciar que a conjunção carnal se verifica a partir da penetração do pênis na vagina, enquanto o ato libidinoso se manifesta pela prática de atos sexuais diversos daquela.
A violação sexual mediante fraude
Há alguns anos, o Brasil foi surpreendido por uma série de denúncias contra João de Deus, um dos médiuns mais famosos do mundo e, até então, uma das autoridades espirituais mais respeitadas dos tempos modernos.
É de observar, antes de prosseguirmos, que figuras importantes do direito criminal (caso de Guilherme de Souza Nucci) já se se posicionaram no sentido de que o crime praticado pelo médium foi o estupro, e não a violação mediante fraude.
Temos, no entanto, que o uso da fé alheia para a obtenção da vantagem sexual é a situação que melhor representa o crime objeto deste tópico. Nossa posição, inclusive, encontra guarida na jurisprudência. Vejamos alguns julgados.
Homem de grande prestígio em seu meio. Havido como “pai espiritual”, gozava de influência considerável. A ele se dirigiam inúmeras pessoas à procura de curas milagreiras. Baixar espírito segue orientação de “Pai ou do Exu” e a vítima, à mercê, não tem sequer condições de oferecer a menor resistência psíquica e deixa-se possuir pelo “guia” – “Houve fraude e por esta se deve entender todo o meio astucioso, o ardil, o engano, ou outras práticas exigentes da apreciação in concreto para serem qualificadas como tais” (TJSP – AC – Rel. Camargo Sampaio).
“Comete posse sexual mediante fraude quem, aproveitando-se da credulidade da ofendida, faz-se passar por ‘pai-de-santo’ e, mediante manobras enganosas, vicia sua vontade levando-a à prática de ato sexual para servir sua lascívia” (TJRJ – AC – Rel. Gama Malcher – EJTJRJ 7/285).
Crime contra os costumes. Posse sexual mediante fraude. Apelante que fazia-se passar por “pai-de-santo”. Hipotética incorporação de uma entidade e pedidos para que as ofendidas se despissem e praticassem relações sexuais. Narração harmônica e coerente das vítimas. Réu que é um verdadeiro “estelionatário sexual” (TJSP – AC 197.613-3 – Rel. Lineu Carvalho – Bol. IBCCRIM 40/136).
E aqui está o porquê:
Conforme o artigo 215 do Código Penal, ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima é crime passível de pena que pode variar de 02 a 06 anos de reclusão.
Veja, a princípio, que o crime poderá ser praticado através da fraude, entendida como ardil ou artifício que engana a vítima, ou qualquer outro meio que impeça a sua livre manifestação de vontade.
Um ponto que deve ficar claro aqui é que a fraude deve ser entendida como um meio de enganar cognitivamente a vítima, e nunca como um artifício para diminuir a sua resistência.
Exemplo: fazer a vítima adormecer através de medicamento ou droga e ter com ela conjunção carnal é estupro de vulnerável, e não violação mediante fraude.
A fraude, ademais, pode estar relacionada à identidade do agente ou à legitimidade do ato.
Um exemplo para a primeira hipótese é difícil, dada a dificuldade de ocorrência de uma situação que se amolde ao conceito, mas parte da doutrina cita o exemplo da mulher no hotel.
Imagine que uma mulher e seu marido estão hospedados em um hotel. A mulher, em dado momento, resolve sair do quarto para buscar algo, sendo surpreendida por uma queda de energia no estabelecimento. No escuro e crendo que poderia voltar sem maiores problemas, ela acaba entrando em um quarto diferente. Lá dentro há um homem desconhecido, que passando-se por marido, aproveita para ter com ela uma relação sexual.
A situação é bem fantasiosa, mas é usada para exemplificar.
De outro modo, teríamos a fraude relacionada à legitimidade do ato.
Para ilustrar a questão, poderíamos aproveitar dos julgados citados anteriormente e destacar a figura do curandeiro, que se aproveita da fé da vítima para satisfazer seu desejo sexual.
Em breves linhas, essa seria a definição da violação sexual mediante fraude.
A principal diferença entre a violação sexual mediante fraude e o estupro
Temos, portanto, como principal diferença entre os crimes de estupro e violação sexual mediante fraude a violência.
No estupro, o indivíduo viola a dignidade sexual da vítima rompendo a sua resistência de maneira física (violência) ou moral/psicológica (violência ou grave ameaça).
Na violação sexual mediante fraude a coisa muda de figura.
Isso porque a vítima acaba aceitando ter uma relação sexual com o agente, embora sua vontade esteja viciada por uma fraude ou qualquer outro artifício que não a faça perceber o erro.