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Hebert Freitas
Hebert Freitas é coordenador do Síntese Criminal e advogado pela Universidade Federal Fluminense. Siga no Twitter/X: @freitashebert_

Em julgado paradigmático, 6ª Turma do STJ anula processo por recusa injustificada de ANPP em caso de tráfico privilegiado

Para o relator, ministro Rogério Schietti, MP deve demonstrar que o investigado não faz jus ao tráfico privilegiado, sob pena da denúncia ter que ser rejeitada por falta de interesse de agir
Foto: reprodução/STJ.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, anular um processo desde a denúncia após constatar que Ministério Público recusou a oferta de um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) a um homem acusado por tráfico de drogas.

A princípio, o Parquet não ofereceu o acordo sob o fundamento de que o tráfico seria hediondo.

Ao final da ação penal, no entanto, o próprio órgão ministerial, dada a desclassificação para o chamado “tráfico privilegiado” (artigo 33, § 4º, da Lei 11.343/03), pugnou pela aplicação do ANPP.

Ao julgar o recurso da defesa, o relator, ministro Rogério Schietti, destacou que o ANPP é um importante instrumento para agilizar o sistema de justiça criminal, ao permitir a solução consensual de crimes de menor gravidade.

A proposta, continuou o ministro, também tem como objetivo evitar o sobrecarregamento do Judiciário, ao mesmo tempo que limita o impacto negativo de processos criminais sobre os réus.

Na decisão, o ministro ressaltou a recusa inicial do Ministério Público, que foi efetivada sob o argumento de que o tráfico de drogas seria crime hediondo, não permitindo o oferecimento do acordo de não persecução.

Para Schietti, no caso específico do tráfico privilegiado, o acordo pode ser oferecido, desde que respeitados os requisitos legais.

O relator também enfatizou que a discricionariedade do MP em oferecer ou não o ANPP é limitada por critérios objetivos, sendo necessário fundamentar a recusa com base em elementos concretos do caso.

“A mera gravidade abstrata do crime não pode ser usada como justificativa”, pontuou.

Além disso, também invocou a prática do chamado “overcharging”, que consiste na tática da acusação de apresentar acusações excessivas para forçar o réu a uma situação desfavorável.

O ministro ressaltou que o Ministério Público, nos casos de tráfico, deve demonstrar com base nos elementos do inquérito que o investigado não merece a aplicação do tráfico privilegiado ou que a gravidade do caso concreto é tamanha a ponto de o acordo não ser suficiente para a reprovação ou prevenção do crime.

“Caso contrário, a recusa injustificada ou ilegalmente motivada do Parquet em oferecer o acordo deve levar à rejeição da denúncia por falta de interesse de agir para o exercício da ação penal nas modalidades necessidade e utilidade (artigo 395, II, do CPP)”, pontuou o relator.

Veja os principais pontos do julgado:

  • FINALIDADE DO ANPP: visa dar uma resposta mais célere e eficiente a delitos de menor gravidade, aliviando o sistema penal e reduzindo o número de processos. Ao mesmo tempo, limita a sobrecarga do sistema judiciário e mitiga os danos causados pelo processo penal.

  • DISCRICIONARIEDADE REGRADA: o MP tem uma discricionariedade vinculada, ou seja, deve respeitar certos parâmetros legais e não pode se recusar arbitrariamente a propor o ANPP. A recusa só pode ocorrer com base em critérios concretos, e o MP deve justificar adequadamente sua decisão.

  • DEVER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: o MP tem o dever de considerar o ANPP quando os requisitos legais forem cumpridos, sendo sua recusa uma exceção. O Ministério Público não pode simplesmente se basear em critérios subjetivos ou na gravidade abstrata do crime, como ocorre em crimes considerados hediondos.

  • INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO: o Poder Judiciário tem o papel de revisar a fundamentação do MP e, se entender que a recusa foi inadequada, pode determinar a remessa do caso a uma instância superior do MP para nova análise. No caso analisado, o MP recusou o ANPP com base na natureza do crime de tráfico de drogas, considerado hediondo. Porém, foi destacado que o tráfico privilegiado, que pode levar a penas menores, permite a aplicação do ANPP.

  • OVERCHARGING: o relator fez uma analogia com a prática dos Estados Unidos, onde muitas vezes o MP apresenta acusações excessivas (overcharging) para forçar o réu a aceitar um acordo. No Brasil, a recusa de oferecer um acordo quando a pena pode ser reduzida configura um excesso de acusação, impedindo o investigado de acessar um benefício legal.

  • CONCLUSÃO DO CASO: o STJ concluiu que o MP não justificou adequadamente a recusa do ANPP, visto que o crime de tráfico privilegiado permitia a redução da pena abaixo de 4 anos. O tribunal decidiu, por unanimidade, anular o recebimento da denúncia e determinou a remessa do caso ao MP para uma nova análise da oferta do acordo.

Referência: Recurso Especial 2.038.947/SP.

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