Promotora do “caso Boate Kiss” reduz decisão do TJRS de anular júri a “valorizar mais a forma do que o sofrimento”

Fala desrespeita o poder Judiciário e o estado democrático de direito
Reprodução.

A promotora Lúcia Helena Callegari, nesta sexta-feira (27), concedeu uma entrevista ao programa à Band News em que criticou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que reconheceu diversas nulidades ocorridas na sessão do tribunal do júri do ‘caso Boate Kiss’ e anulou o julgamento.

Em uma frase lamentável, com o aparente propósito de contrapor o tribunal à sociedade (em tempos em que o Judiciário brasileiro vem sendo atacado de forma incisiva), a promotora afirmou que a decisão do TJRS “valorizou mais a forma do que o sofrimento”.

Por que a frase é problemática?

O respeito ao sufrágio, ao sigilo do voto, ao mandato popular democraticamente alçado por parlamentares, ao governo constituído, às instituições, etc, é um pressuposto da democracia, mas o estado democrático de direito não só a ele se resume.

O direito ao recurso, dada a importância para o estado democrático de direito adotado pelo Brasil, foi alçado a patamar Constitucional (incluído na Constituição Federal, em outras palavras) e em uma posição topográfica estratégica: o artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais.

Diz o inciso LV do artigo 5º que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A Carta Magna do país, portanto, não deixa dúvidas: o direito ao recurso é pressuposto do processo democrático.

Respeitar o direito ao recurso e respeitar as decisões e a independência do poder Judiciário, assim, constitui um dos elementos básicos do respeito à democracia.

Mas o problema não para por aí.

Ao dizer que o TJRS valorizou mais a norma do que o sofrimento, a promotora sugeriu que o tribunal se apegou a elementos técnicos dos quais poderia abrir mão.

Em 2022 (veja a íntegra deste julgamento aqui), a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Habeas Corpus 731.882/AM, acolheu os argumentos da Defensoria Pública para anular o processo de um policial militar condenado no tribunal do júri por homicídio. A pena imposta ao final da sessão de julgamento foi a de 16 anos de reclusão, tendo o agente cumprido boa parte da reprimenda preso.

Nesse caso, foi necessário recorrer não apenas à segunda instância, mas também a uma instância especial (ou extraordinária, segundo alguns autores) para que a pena ilegal fosse anulada. O que seria deste policial, que perdeu anos de convívio com familiares, amigos, se o Superior Tribunal de Justiça não tivesse, nas palavras da promotora, “valorizado mais a forma do que o sofrimento”?

Um leitor que não pertence ao mundo do direito pode estar se perguntando, neste momento, de forma indignada, se o sofrimento – principalmente neste caso absolutamente doloroso – deveria, então, ser escanteado ou menosprezado.

A resposta, claro, não poderia ser outra: NÃO!

A dor – principalmente dos parentes enlutados – jamais deve ser esquecida. É preciso de tomemos o caso da Boate Kiss como exemplo para que nunca mais contemplemos um caso tão trágico e marcante. O caso também deixa a impunidade de autoridades como exemplo a não ser seguido, mas este é um papo para outro texto.

O clamor por justiça é justo. Mais do que isso: é necessário. O grande problema não existe direito sem respeito à técnica e aos direitos e garantias fundamentais – que ganham vida no processo penal por meio das formas e suas formalidades previstas no Código de Processo Penal – e não existe justiça sem direito.

É preciso que se diga, portanto, que respeitar a democracia e clamar por justiça também significa respeitar as decisões do poder Judiciário e as garantias e direitos individuais (principalmente o direito ao recurso). Afinal, fora do direito só há a barbárie, e barbárie é algo que não suportamos mais no Brasil.

Veja o vídeo clicando aqui.

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