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Hebert Freitas
Hebert Freitas é coordenador do Síntese Criminal e advogado pela Universidade Federal Fluminense. Siga no Twitter/X: @freitashebert_

Retroatividade do acordo de não persecução penal: a jurisprudência brasileira vem agindo muito mal!

Compulsando a Constituição e o Código Penal, a retroatividade do acordo de não persecução penal parece clara. Não para os tribunais...

Anteriormente previsto pelo artigo 18 da Resolução nº 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, o acordo de não persecução é um instituto que foi positivado no direito processual penal brasileiro a partir da Lei Anticrime (13.964/19).

Em definição superficial, o ANPP em um acordo realizado entre o membro do Ministério Público (ou o querelante) e o imputado, objetivando, como o próprio nome sugere, evitar que uma ação penal seja intentada.

Não iremos nos debruçar sobre as características do instituto no presente artigo, visto que já o fizemos em outras oportunidades. 

Recomendamos, inclusive, que você leia os seguintes artigos:

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Na presente oportunidade, pretendemos chamar a atenção para um rumo que a jurisprudência pátria vem perigosamente seguindo e que, infelizmente, o establishment criminal brasileiro parece ainda negligenciar.

Como você já pôde identificar no título, falaremos, hoje, sobre a insistência dos tribunais superiores em negar vigência à necessária e impositiva retroatividade do acordo de não persecução penal.

De início, necessário observar que no direito brasileiro a lei processual penal, nos termos do artigo 2º do CPP, se aplica imediatamente após o início da vigência de seus efeitos, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Um detalhe que precisa ser verificado, no entanto, é que uma lei processual penal pode ter a chamada “natureza mista”, de modo que ela, além do conteúdo meramente procedimental, ostente outro de natureza material, devendo, assim, retroagir para beneficiar o imputado, como manda os artigos 5º, inciso XL, da CF e. 2º, do CP.

Foi o caso, por exemplo, da Lei 9.099/95, que instituiu no ordenamento jurídico pátrio os chamados institutos despenalizadores. A lei, claro, tinha como objetivo a tutela dos Juizados Especiais, nutrindo, por óbvio, natureza processual. 

Não obstante, como tratava do direito de punir do Estado, também era revestida de conteúdo material, não estando exclusivamente submetida, deste modo, ao regramento relacionado à lei processual no tempo.

É de se observar que o artigo 90 da referida lei prescreve, expressamente, que as disposições verificadas no bojo daquela legislação não seriam aplicáveis às ações penais cuja instrução já restasse iniciada, o que, por óbvio, é um erro.

Acertadamente, o Supremo Tribunal Federal, em 2007, concluiu que as normas penais inseridas no dispositivo deveriam retroagir, posto que as mesmas dispunham de condições mais benéficas ao réu. Concluiu-se, assim, que os novos regramentos penais da Lei 9.099/95 não estavam submetidos à regra do artigo 90.

Caso semelhante aconteceu, ainda, com a nova redação que a Lei nº 9.271/96 conferiu ao artigo 366 do Código de Processo Penal.

Em resumo, apesar da natureza processual, o dispositivo também tutelava regramento material, visto que alterava regras relacionadas à prescrição. 

Não obstante as inúmeras polêmicas e os diversos entendimentos que pipocaram à época, o Supremo Tribunal Federal assentou que a alteração (maléfica ao réu) deveria incidir somente nos processos intentados após o início da vigência da lei.

 Gostemos ou não dos mecanismos da chamada justiça penal negocial, a verdade é que a autonomia privada e a possibilidade de transigir das partes são elementos indissociáveis de um acordo (ainda que este possua natureza criminal).

Desta forma, como o acordo de não persecução penal deve ser oferecido pelo acusador, as recomendações do Ministério Público (ainda que o querelante também possa oferecer) devem ser destacadas e consideradas com maior importância,

No Brasil isso é ainda mais relevante, visto que o Ministério Público Federal, por exemplo, realiza acordos de natureza penal desde 2014, sendo, pelo menos em tese, o órgão mais capacitado para versar sobre as dinâmicas do instituto.

Nesse sentido, faz-se necessário trazermos à baila o Enunciado 98 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, que recomenda que os acordos de não persecução sejam oferecidos em todos os processos ainda não transitados em julgado, desde que o fato, claro, se amolde às prescrições constantes do artigo 28-A do CPP.

Vejamos:

É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão.

Alterado na 187ª Sessão Virtual de Coordenação, de 31/08/2020. (Grifo nosso)

O órgão, como podemos inferir do Enunciado, recomenda que os procuradores analisem cada caso concreto, oferecendo, se for o caso, o acordo aos réus, pouco importando se a sentença já foi proferida ou se o caso está sob a apreciação dos tribunais superiores.

Parafraseando o ex-árbitro Arnaldo Cezar Coelho (impossível não fazer tal remissão): a regra é clara.

Neste momento, você pode estar se sentindo confuso, afinal, qual a necessidade de se afirmar o óbvio?

Pois é. A questão é que a matéria está longe de ser óbvia nos tribunais superiores, e é aí que mora o grande perigo.

Aqui, como pontuamos, se encontra o ponto nevrálgico da questão.

No dia 19/03/2021, o portal de notícias do Superior Tribunal de Justiça destacou uma decisão da 6ª Turma, que não admite (sic) a retroação do acordo de não persecução penal caso a denúncia já tenha sido recebida.

Conforme a notícia, a ministra Laurita Vaz, relatora da matéria, ressaltou que por mais que se trate de norma de conteúdo híbrido, mais favorável ao réu – o que não se discute –, o deslinde da controvérsia deve passar pela ponderação dos princípios tempus regit actum e da retroatividade da lei penal benéfica, sem perder de vista a essência da inovação legislativa em questão e o momento processual adequado para sua incidência.

A ministra ainda vai além, dizendo que o propósito do acordo de não persecução penal é o de poupar o agente do delito e o aparelho estatal do desgaste inerente à instauração do processo-crime, abrindo a possibilidade do membro do Ministério Público oferecer condições para o investigado (e não acusado) não ser processado, desde que atendido os requisitos legais.

Contrapor o entendimento de S. Exa. não é o nosso objetivo hoje, mas alguns pontos precisam ser observados.

Nas palavras da ministra, o propósito do acordo de não persecução penal é poupar o agente e o aparelho estatal do desgaste inerente à instauração do processo-crime.

Data vênia, a decisão parece caminhar em sentido contrário.

A uma, pois da denúncia até o trânsito em julgado existem indeterminados atos processuais a serem realizados, de forma que o aparelho estatal será amplamente desgastado se o acordo deixar de ser oferecido. 

O desgaste maior de uma ação penal não acontece no momento de sua instauração. Pelo contrário.

A duas (mas ainda dentro do argumento do “desgaste estatal”), pois, como muito bem assevera Guilherme de Souza Nucci, o acordo de não persecução penal abarca crimes e situações que dificilmente levarão o agente ao cárcere, de modo que eventual sanção condenatória imporá, proporcionalmente, as mesmas condições que o agente precisaria cumprir em razão de um ANPP firmado com a acusação.

Se um itinerário com o mesmo destino oferece um percurso mais longo e outro mais curto, certo é que quem optar pelo primeiro terá um desgaste muito maior.

Restringir a retroação aos casos em que a denúncia ainda não foi recebida, portanto, causa um desgaste significativamente pior ao aparato estatal.

A três, pois não é, de forma alguma, exclusivo do momento de instauração do processo penal o desgaste do réu.

Quem milita na área criminal sabe como uma ação penal é desgastante também para o imputado. Não há como mensurar o impacto psicológico, moral, social, financeiro, etc do procedimento.

O argumento da excepcional ministra, nesse caso em específico, parafraseando o jargão popular, não fica em pé sozinho, portanto.

Ultrapassada a breve análise, faz-se importante evidenciarmos que o entendimento da Sexta Turma era diverso, como podemos depreender do HC  575.395/RN, de relatoria do saudoso min. Nefi Cordeiro.

Naquela oportunidade, assentou a referida Turma que é o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF).

Mas tal entendimento, infelizmente, não resume a posição do Superior  Tribunal de Justiça, vide AgRg no AResp 1.1668.298/SP; EDcl no AgRg no AgRg no AREsp 1.635.787; EDcl no AgRg no Edcl no AREsp 1.681.153/SP, etc

No Supremo Tribunal Federal, a matéria ainda não foi pacificada, mas uma uniformização do entendimento pode estar perto de ser levada a efeito.

Isso porque o min. Gilmar Mendes, com o propósito de dar fim às dissidências relacionadas ao tema, afetou o HC 185.913 ao Plenário.

Assim, poderemos ter, em breve, um posicionamento concreto acerca da matéria.

Fica evidenciado, portanto, que o acordo de não persecução penal, por também tratar de assunto de direito material, deve retroagir (caso se amolde aos requisitos existentes), nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição da República e art. 2º do Código Penal, desde que não haja trânsito em julgado.

Infelizmente, a matéria parece caminhar em sentido contrário, já que os tribunais superiores, sobretudo o STJ, vem restringindo a retroação àqueles casos em que a denúncia ainda não foi recebida.

Ademais, necessário reafirmar que o posicionamento do Ministério Público deve operar com mais vigor neste caso, já que, como afirmamos, trata-se de mecanismo negocial, devendo valer a autonomia das partes.

Neste sentido, inclusive, vai o min. Gilmar Mendes, como é possível inferir do seguinte texto extraído do já mencionado HC 185.913.

Reafirmada a prevenção deste Relator, novamente abra-se vista à PGR, no prazo regimental e com urgência dada a relevância da temática, especialmente em relação às questões-problemas apontadas na decisão monocrática que afetou o caso ao Plenário deste Supremo Tribunal Federal: a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28- A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado? b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo? Publique-se. Brasília, 22 de dezembro de 2020.

Assim, a única conclusão deve ser no sentido de ser, sim, possível a retroação do acordo de não persecução penal a todos os processos (desde que cumpridos os requisitos) sem trânsito em julgado.

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