A Terceira Seção do STJ, responsável por uniformizar o entendimento das duas Turmas criminais da Corte, voltou a tratar das abordagens policiais em um julgamento importantíssimo realizado nesta quinta.
No julgamento, a Seção fixou que a fuga ao avistar uma guarnição policial justifica a busca pessoal e ressaltou que o ônus de comprovar que o imputado realmente fugiu é da acusação.
Veja um resumo do julgamento:
Busca pessoal de cunho processual penal não pode ser confundida com revistas realizadas em shows, aeroportos, estádios, etc
Um dos argumentos de quem defende uma ausência de rigidez dos requisitos das buscas realizadas pela polícia é do de que esse tipo de procedimento é comum em aeroportos, estádios, shows, etc.
O relator do feito, ministro Rogério Schietti, começou o voto rebatendo esse ponto.
Schietti ressaltou que essas buscas de natureza contratual (consensual) diferem-se das buscas pessoais, que possuem natureza processual penal.
Para o ministro, buscas pessoais de natureza processual penal exigem requisitos mais rigorosos.
Diferença em relação às blitzes de trânsito
O relator também destacou que uma busca de cunho processual penal difere-se de uma blitz de trânsito realizada com o escopo de fiscalização da malha viária.
O ministro observou que as abordagens de trânsito são abordagens pontuais decorrentes do poder de polícia administrativo. “Essas buscas realizadas no trânsito não autorizam automaticamente o agente policial a fazer uma revista no motorista, nem no veículo, salvo se tiver uma fundada suspeita da prática de um crim ou quando houver uma violação grave a uma norma de trânsito, como, por exemplo, um condutor que foge ao avistar a blitz ou que está em uma velocidade excessiva e trafega na contramão”.
O constrangimento ilegal inerente às revistas policiais
Schietti ressaltou o constrangimento causado pelas buscas policiais, que normalmente são feitas à vista de todos, no meio da rua.
O ministro pontuou que muitos protocolos policiais orientam que o policial, como forma de garantir sua segurança, obriguem a pessoa a virar de costas, abrir as pernas, entrelaçar os dedos e muitas vezes a deitar no chão de bruços, sempre, claro, sob a mira de uma arma, o que demonstra que esse tipo de procedimento, que causa constrangimento, deve que ser feito com ressalvas e sempre de forma fundamentada.
O ministro deixou claro que não estava questionando a legalidade do protocolo, que visa garantir a segurança do policial, mas sim demonstrar que esse tipo de procedimento gera, sim, constrangimento.
O medo que jovens periféricos sentem das abordagens policiais
O ministro também ressaltou um estudo sobre racismo e abordagem policial em que jovens de bairros periféricos do Rio de Janeiro.
“Eu fico pensando como será a minha vida. Eu vou ser parado pela polícia todo dia?”, disse um deles.
“Eu não posso usar a roupa que eu gosto”, disse outro.
“Eles tentam imprimir que a gente é o suspeito. A gente acaba até duvidando da própria honestidade”, ressaltou mais um entrevistado.
A (i)legalidade de uma busca pessoal não pode depender do encontro de objetos ilícitos
Schietti advertiu que a legalidade ou não de uma busca pessoal não pode depender do encontro fortuito de um objeto.
“A fundada suspeita para uma busca deve ser sempre prévia e a validade da medida independe do resultado da busca. Se havia fundada suspeita de posse de corpo de delito, a ação policial é legítima, mesmo que o indivíduo seja inocente. Se não havia fundada suspeita, a ação é ilegal, ainda que o indivíduo seja culpado”.
Estatísticas preocupantes relacionadas às revistas policiais
O ministro ressaltou estudo que mostra que de cada 100 abordagens realizadas pela polícia, 99 são infrutíferas.
Tirocínio policial
Críticos da jurisprudência do STJ sobre busca pessoal sempre afirmam que o policial ostenta experiência e um tirocínio que o permitem saber quem é ou não suspeito.
Sobre esse ponto, Schietti ressaltou que a jurisprudência do Supremo e da Corte Interamericana de Direitos Humanos já rechaça esses elementos subjetivos que dependem exclusivamente da percepção pessoal de um indivíduo.
“Nós não estamos desprezando o tirocínio policial. Estamos apenas dizendo que isoladamente tal elemento não pode autorizar uma revista, uma vez que além de poder representar a reprodução inconsciente de preconceitos estruturais, ainda é impossível de ser submetido ao controle judicial, tamanha a sua subjetividade”. pontuou.
“Portanto, os requisitos para uma abordagem devem ser de natureza objetiva”, disse.
“Do mesmo modo que um juiz não pode fundamentar uma decisão apenas por ter sentido que o acusado ou testemunha mentiu em seu depoimento, também não se pode admitir que o policial adote medidas restritivas de direitos fundamentais com base somente na sua intuição ou impressão subjetiva”, afirmou.
Supremo não “derrubou” tese do STJ sobre busca pessoal
O ministro também pontuou que o Supremo não “derrubou” a tese do STJ sobre busca pessoal.
Fugir ao ver a polícia justifica a abordagem policial
O ministro pontuou que fugir da polícia não pode justificar o ingresso não autorizado no domicílio, mas pode autorizar, sim, uma busca pessoal.
Schietti ressaltou a preocupação de muitos (principalmente do ministro Sebastião Reis Jr.) de que o fato de o STJ validar a busca pessoal fundada na fuga pudesse fazer com que policiais passassem a justificar toda busca com base nesse argumento.
O ministro ressaltou que esse é um problema de ordem probatória e que tem que ser enfrentado.
O ministro pontuou, inclusive, que a jurisprudência vem relativizando cada vez mais os testemunhos policiais como prova única para condenações.
O “especial escrutínio” dos testemunhos policiais
O relator pontuou que testemunhos policiais precisam ser corroborados, por exemplo, por vídeos, devendo estes, enquanto poucas polícias estão equipadas com câmeras, passarem por um ‘especial escrutínio’, que implica 4 diretrizes:
a) O depoimento do policial deve ser analisado com especial cautela;
b) Se o testemunho do policial parecer inverossímel, deverá ser rejeitado;
c) Se houver contradição nos depoimentos de policiais ou corroboração da versão do réu, as provas devem ser excluídas;
d) O ônus da prova sobre a legalidade da busca deve ser atribuído ao Estado.
As preocupações em relação ao voto externadas pelos ministros Sebastião e Daniela
Durante o julgamento, os ministros Sebastião Reis Jr. e Daniela Teixeira fizeram externaram uma preocupação relacionada à utilização do testemunho policial como única prova para a comprovação da fundada suspeita. Para os ministros, a acusação deve trazer elementos concretos sempre que a fuga invocada pelos policiais for contraditada.
Panorama geral
Embora a Terceira Seção tenha fixado entendimento no sentido de validar provas colhidas a partir de buscas pessoais fundadas na alegação de policiais de que o imputado fugiu ao avistar a guarnição, ficou claro que em breve a Corte deve enfrentar o valor probatório dos testemunhos policiais.
Isso ficou expresso não apenas no do voto do relator, ministro Rogério Schietti, mas também nos votos da ministra Daniela Teixeira e do ministro Sebastião Reis Jr.
Vale lembrar que o ministro Ribeiro Dantas, atual presidente da Terceira Seção, já demonstrou em sessões recentes o seu descontentamento com a jurisprudência atual, que considera suficiente condenações baseadas somente em testemunhos policiais.
Publicado o acórdão, traremos uma matéria completa sobre esse julgamento paradigmático.